O Professor Silvio Melhado é uma figura destacada na área de gestão de projetos, com uma formação sólida em Engenharia Civil e Arquitetura e uma carreira marcada por seu envolvimento em planejamento e orçamento de projetos.
Completando, em 2024, 30 anos desde o seu doutorado, ele conta sobre porque escolheu se especializar em gestão de projetos motivado pela percepção de que muitos dos problemas enfrentados nos projetos não se deviam a falhas técnicas, mas à gestão. Durante seu doutorado, a introdução das normas ISO 9000 despertou grande interesse sobre como aplicar a gestão da qualidade aos projetos de arquitetura e engenharia, o que o levou a focar em melhorar a qualidade dos processos de projeto por meio de uma gestão mais eficiente.
Ao longo da conversa que tivemos com ele, dois pontos se destacam.
Primeiro, Melhado enfatiza a importância crescente da gestão de projetos ao longo das últimas décadas, especialmente com a adoção de novas tecnologias e metodologias como BIM (Building Information Modeling) e Inteligência Artificial. Este foi, inclusive, um ponto destacado pela engenheira Kalindi Duarte em sua entrevista para a Grua Insights.
Segundo, ele ressalta que a educação continuada é essencial para a formação de bons gestores de projetos, complementando as lacunas deixadas pelos cursos de graduação que tradicionalmente focam mais em aspectos técnicos. Ele acredita que a combinação de experiência prática com formação contínua é vital para a evolução e sucesso dos profissionais na área de gestão de projetos.
Confira a íntegra da conversa com o professor doutor Silvio Melhado:
Este ano o senhor completa 30 anos desde o seu doutorado em gestão de projetos. O que te levou a optar por esta especialidade?
Eu estudei Engenharia Civil e Arquitetura, e trabalhei com projetos, planejamento e orçamento no início da minha carreira profissional. Desde cedo, percebi que havia vários problemas envolvendo projetos que não estavam ligados a deficiências de conhecimento técnico, que eram questões de gestão. Na época do meu Doutorado, a ISO 9000 era novidade e todos se perguntavam sobre como aplicar a gestão da qualidade aos projetos de arquitetura e de engenharia. Nesse contexto, senti-me motivado a estudar o processo de projeto com o intuito de propor formas de melhorar a sua qualidade, por meio da gestão.
Gestão de projetos e coordenação de projetos são a mesma coisa?
Gestão de projetos tem várias acepções, na nossa língua. Ao contrário do que ocorre no inglês ou no francês, que usam palavras diferentes para significados distintos, no português a mesma palavra “projeto” é usada em vários contextos, apresentando diversos significados; no caso da construção civil, pode se referir a empreendimentos, a projetos (de arquitetura, engenharia etc.) ou mesmo a obras. Quando se pensa em gestão de projetos na área de construção civil, portanto, trata-se de um conceito muito amplo e com múltiplas aplicações. Já a coordenação de projetos, por tradição da área, refere-se às atividades de gestão da equipe de projetos de arquitetura, engenharia etc., e de seus processos, ligados a um determinado empreendimento de construção.
É possível resumir a gestão de projetos em cinco tópicos principais? Quais pontos motivariam um profissional a se dedicar à gestão de projetos de engenharia?
Acho que seria pretensioso querer resumir a gestão de projetos em apenas cinco tópicos, ainda mais que esse projeto tanto pode ser um empreendimento (project, em inglês), ou um projeto de arquitetura ou engenharia (design), ou a obra em si. Porém, é certo que todo(a) profissional de arquitetura ou de engenharia, ao iniciar sua carreira, rapidamente vai se dando conta da importância da gestão e, particularmente, da importância da gestão de projetos, uma vez que o modo de produção na área de construção civil (edificações ou infraestrutura) é baseado no desenvolvimento e execução de projetos. Nem todo(a) profissional, no entanto, vai se interessar por gestão; se isso ocorrer, é interessante buscar uma formação complementar em nível de pós-graduação.
Do ponto de vista do negócio, por que vale a pena, para uma construtora ou incorporadora, investir em gestão de projetos?
No mundo inteiro, todos os estudos acadêmicos, assim como a experiência prática, mostram que é durante a fase de projeto (design) que as decisões tomadas apresentam maior potencial de resultados. Toda decisão tomada mais “à montante” tem melhor relação custo-benefício do que as decisões tomadas “à jusante”. Sendo assim, do ponto de vista estratégico, o investimento em gestão de projetos tem potencial de antecipar cenários futuros e decidir pelas melhores soluções para se garantir o melhor cenário possível.
Ao longo do tempo, entende que a disciplina perdeu ou ganhou em importância?
Sem dúvida alguma, a gestão de projetos só vem ganhando em importância ao longo das últimas décadas. As diversas “ondas” de evolução do setor da construção civil, envolvendo a aplicação de normas internacionais e certificações, lean construction, industrialização e pré-fabricação, sustentabilidade, BIM, apenas para citar algumas das mais importantes, deram destaque à gestão de projetos, ainda que tenham lançado mão de novos vocabulários. Os cursos de pós-graduação e a certificação profissional em gestão de projetos continuam a crescer em todo o mundo.
Quais foram as influências da tecnologia no papel do gestor de projetos?
A tecnologia está cada vez mais presente e influencia todas as atividades humanas, entre elas, a gestão de projetos. Particularmente, se ao falar de “tecnologia”, o foco estiver na passagem do mundo analógico ao mundo digital, pode-se dizer que as ferramentas se multiplicaram e se desenvolveram muito, o que exige mais estudo para se fazer gestão. E, se a referência a “tecnologia” for ligada a inovações tecnológicas que fazem evoluir os métodos construtivos, pode-se destacar o fato de que a introdução de inovações exige mais esforço de gestão de projetos do que a construção tradicional. Resumindo, um setor em evolução pede mais gestores(as) de projetos.
Em termos de formação, qual seria o caminho feliz para um profissional se tornar um bom gestor de projetos?
A resposta a essa pergunta é fácil e rápida: educação continuada. Somente a educação continuada pode preencher as lacunas da formação dada nos cursos de graduação, que privilegiam matérias de cunho técnico. A educação continuada tornou-se obrigatória, preparando assim os(as) profissionais para fazerem gestão sem improvisos e “achismos”.
O ambiente acadêmico é capaz de preparar bons gestores e coordenadores?
Retomando a partir da resposta anterior, a resposta é “sim, o ambiente acadêmico é capaz de formar gestores(as)”, mas isso vai acontecer em nível de pós-graduação. E o(a) profissional de gestão de projetos precisará continuar estudando e complementando a sua formação ao longo da sua carreira, para isso frequentando vários ambientes acadêmicos, seja no Brasil, seja no exterior; de forma presencial ou não.
Qual a importância do mestrado e do doutorado para a atuação prática em gestão de projetos?
Mestrado e Doutorado, em contraposição aos programas “lato sensu” (MBA, Especialização etc.), são programas de pós-graduação “stricto sensu”, que privilegiam a formação em pesquisa. Dado isso, há dois campos de grande importância que devem ser considerados, quando falamos de mestrado e doutorado: (1) mestrados e doutorados são necessários para formar aqueles(as) que serão professores(as) nos cursos “lato sensu”, assim como nos cursos de graduação; (2) mestrados e doutorados também podem contribuir para o aprofundamento de competências de atuação profissional, ao conferir uma autonomia intelectual que favorece liderança e reconhecimento. Em suma, a atuação prática em gestão de projetos, direta ou indiretamente, depende da existência de bons programas de mestrado e doutorado com linhas de pesquisa em gestão de projetos.
Quais atributos e entregas indicam que um gestor de projetos é bom?
Essa pergunta precisaria ser respondida dentro de um determinado contexto, para ter maior profundidade. De qualquer modo, pode-se afirmar que é essencial que o(a) gestor(a) seja capaz de antecipar cenários. Antecipação é um atributo de quem consegue evitar que “o circo pegue fogo”, em vez de “apagar um incêndio por dia”. E a entrega resultante desse atributo é garantir qualidade com menores desvios de prazos e custos, por exemplo.
De que maneira a gestão de projetos se relaciona com o BIM?
Atualmente, BIM (Modelagem de Informação da Construção) é parte integrante de todas as atividades realizadas no setor, em maior ou menor grau, de forma direta ou indireta. Todo(a) profissional, hoje, precisa conhecer BIM e saber de que formas as tecnologias digitais se inserem nos processos de que participa. A gestão de projetos, diante da implementação progressiva do uso de BIM, se vê confrontada a desafios e a oportunidades bastante relevantes.
Na sua visão, como essas disciplinas podem ser integradas?
Como toda inovação, BIM exige maior esforço de gestão, ao mesmo tempo em que tem potencial de entregar melhores resultados dos projetos. Porém, recomenda-se fortemente manter uma visão crítica quanto ao uso inapropriado da inovação; sendo que essa visão crítica depende, essencialmente, de um conhecimento aprofundado do tema. E conhecimento não se compra, nem se terceiriza!
O que um profissional de gestão de projetos precisa aprender para atuar com metodologia BIM?
É difícil responder com exatidão sem se especificar qual é atuação desse(a) gestor(a) de projetos. Porém, de forma genérica, um(a) gestor(a) de projetos terá um desempenho tanto melhor quanto mais conhecimento de conceitos e de processos BIM tiver. Mesmo que ele(a) não use diretamente a tecnologia BIM, precisará interagir com quem faz uso dela. E ninguém é capaz de fazer uma boa gestão de algo que não sabe exatamente o que é. Além disso, frequentemente, o(a) gestor(a) será usuário(a) de softwares e sistemas BIM, devendo receber treinamento nessas ferramentas, evidentemente.
A gestão de projetos é uma boa “porta de entrada” para empresas que pretendem implementar a metodologia BIM?
Essa pergunta pode levar a diversas interpretações. No sentido mais geral, não se imagina uma empresa bem-sucedida nos setores de Arquitetura, Engenharia, Construção e Operação que não seja competente em gestão de projetos. Nesse sentido, a resposta seria “sim”. Por outro lado, a própria implementação de BIM nada mais é do que um projeto e, portanto, vai exigir conhecimentos de gestão de projetos. Ao final, a empresa vai se dar conta de que precisará trabalhar com duas “camadas” de gestão: na gestão dos projetos que fazem parte da sua atuação enquanto empresa; e na gestão de um projeto de inovação, envolvendo a implementação de BIM.
O Brasil tem bom nível de gestão de projetos? Quais países são referências na disciplina em especial quando se trata do uso de BIM?
Do meu ponto de vista, após viver experiências em alguns países desenvolvidos, eu considero que nossos(as) gestores(as) têm um excelente nível. Os ambientes de atuação são completamente diferentes, claro. Na prática, o Brasil apresenta complexidades que não se encontram em países mais desenvolvidos, pois eles conseguem criar regras e padrões que facilitam em muito a gestão, reduzindo a variabilidade e a complexidade. Em outras palavras, dos(as) brasileiros(as) são exigidas mais habilidades e competências do que dos(as) colegas no exterior. Nós conhecemos os guias e métodos que foram criados nos países do primeiro mundo, e sabemos como adaptá-los à nossa realidade.
Como entende que tem se dado o impacto da IA na gestão de projetos?
A Inteligência Artificial está a cada dia mais presente em todos os processos e atividades humanas. Do meu ponto de vista, porém, o seu maior potencial está em automatizar processos repetitivos ou que têm muitos dados de referência para servirem de base aos programas de IA. No entanto, na gestão de projetos, a variabilidade de processos e a pouca disponibilidade de dados de projetos anteriores limitam algumas aplicações de IA. O que não significa que ela não possa simplificar e apoiar a atividade dos(as) gestores(as), que continuarão a ser protagonistas dessa gestão, ainda por um bom tempo.
Como acredita que vai se dar a evolução da gestão de projetos ao longo da próxima década?
Toda evolução acontece quando é realmente necessária para a sobrevivência de um determinado grupo de pessoas. Hoje, a sobrevivência de gestores(as) de projetos depende de suas competências e habilidades para lidar com o mundo digital. Com isso, o perfil profissional já vem se alterando há alguns anos, e continuará a mudar rapidamente. O nosso maior desafio é evitar que se perca conhecimento, nessa passagem do analógico ao digital. Acredito, portanto, que a evolução da gestão de projetos deverá passar por um necessário resgate da experiência na área, associado à implementação cada vez mais intensa das tecnologias digitais.